Se, no papel, prometia ser um dos dias mais intensos de que há memória no Portugal de Lés-a-Lés, na prática, a primeira etapa da edição de 2025, foi um autêntico caleidoscópio de emoções fortes. No papel, isto é, nas 23 páginas do pedagógico e divertido ‘road-book’, as notas a seguir para cumprir os 426 quilómetros entre Penafiel e Alcobaça deixavam antever as exigências próprias de 12 horas e 10 minutos de condução. Mas não prepararam ninguém para o enorme banquete mototurístico proporcionado na travessia de cinco distritos (Porto, Viseu, Aveiro, Coimbra e Leiria), oito serras (Montemuro, Freita, Arada, Caramulo, Buçaco, Soure, Aire e Candeeiros) e mais de uma dezena de rios (Tâmega, Douro, Bestança, Paiva, Alfusqueiro, Mondego, Ceira, Anços, Arunca, Liz e Alcoa) numa peregrinação de inabalável fé motociclística. Jornada de sucessivas surpresas com final apoteótico mesmo em frente ao Mosteiro de Alcobaça, num dos mais espetaculares panos de fundo do palanque de chegada.

Um banquete de entradinhas e petiscos, como que a abrir o apetite para regressar mais tarde, com tempo para degustar todo o requintado menu turístico que este cantinho à beira-mar plantado tem para oferecer. Porque essa é também uma das funções do evento organizado pela Federação de Motociclismo de Portugal. Dar a conhecer pontos de interesse e despertar a curiosidade para uma descoberta mais aprimorada do património paisagístico, histórico, arquitetónico, cultural e gastronómico.
Mas, para isso, era necessário ter os olhos bem abertos e alma desperta e nada como um forte café do pote, servido pouco depois da madrugadora partida de Penafiel, pelas senhoras do Grupo de Cantares da Casa do Povo de Abragão mesmo junto à Igreja Românica. Um grupo “dedicado a manter vivas as mais genuínas tradições gastronómicas e dos afazeres da região, criando eventos em redor das desfolhadas, das vindimas ou das malhadas do milho”. Para Vera Lúcia, presidente deste grupo que vive só das vozes e deixa os instrumentos opara outros, “este foi um momento muito especial, receber tantos e tantas motociclistas com uma animação fantástica e dar a conhecer os valores tradicionais da nossa terra”. Tanto mais que, além do Grupo de Cantares, com elementos entre os 12 e os 84 anos, também o Rancho Folclórico animou a caravana com rodopiantes danças, enquanto um grupo de calceteiros da empresa ‘Conquistadores & Ca. Motociclistas de Guimarães’, recordava uma das indústrias mais conhecidas do concelho, em momento de grande animação.

Barriguinha mais composta e despedidas aos infames Zés do Telhado, tempo para uma espetacular descida rumo à Barragem do Carrapatelo, travessia inédita em 27 edições, curiosamente na mais antiga das barragens do Douro. Para chegar à obra de arte inaugurada em 1972, nada como paisagens e estradinhas que a todos despertaram para o verdadeiro espírito do Lés-a-Lés e que chamaram a atenção de uma curiosa equipa. Uma estória que se pode contar assim: Era uma vez um português, que foi trabalhar para a Arábia Saudita e conheceu um italiano que gosta de motos e a sua companheira, argentina, com quem partilha todas as aventuras há 28 anos. Cláudio Moreira desafiou Ignazio Scimone e Gabriela Lo Presti a descobrir Portugal da melhor forma possível (de moto…), meteram-se no avião, desembarcaram no Porto e foi tempo de ir à Northroad levantar uma Honda CB500X para rumar a Penafiel. Na chegada a Alcobaça, cansados mas felizes, à imagem de todos os outros 1300 aventureiros, apontavam “a arrumação, a limpeza e as casas muito cuidadas, como uma das grandes surpresas deste país”, num evento “super bem organizado apesar da grande dimensão e onde as surpresas e paisagens espetaculares parecem nascer a cada curva”.

Histórias de princesas, aldeias abandonadas e do ‘morto que matou o vivo’
Pelo caminho tiveram oportunidade de vislumbrar lugares espetaculares, como a mítica aldeia abandonada de Drave ou a Torre de Vilharigues, onde as princesas, aias, cruzados e cavaleiros do Moto Clube do Porto receberam os convidados, recordando a história de Duarte de Almeida, o fidalgo que continuou a segurar a bandeira mesmo depois do inimigo lhe cortar as duas mãos na Batalha de Toro, em 1476. E aproveitaram a frescura da Rota do Românico, miraram os passadiços do Paiva ou alturas da ponte pedonal 516 Arouca, conheceram as ‘livrarias’ do Paiva e do Mondego e o Castelum de Alcabideque.
Mas voltemos um pouco atrás que a viagem teve muitos quilómetros e ainda mais motivos de interesse, num dia em que foi enorme o rácio de curvas por quilómetro percorrido. Que seria bem maior não fossem as enormes retas para ir molhar os pés à praia de Vieira de Leiria. Falemos de novo dos petiscos que, tal como o pequeno mas muito curioso Museu das Trilobites, deixaram água na boca para um regresso com mais tempo, noutra ocasião, que essa é uma das magias do Portugal de Lés-a-Lés. Desvendar segredos para apreciar mais tarde, como aquelas que são apontadas como as maiores trilobites do Mundo, fósseis de animais que viviam no fundo dos oceanos há cerca de 500 milhões de anos, quando estas terras estavam perto do Pólo Sul.
Já no distrito de Viseu, o concelho de Cinfães e o moto clube da terra natal do explorador e político Serpa Pinto (1846) acolhem a caravana para uma pequena mas nutritiva paragem com fruta e sandes. E se o intrépido colonizador se aventurou por terras de África em finais do século XIX, com tamanho sucesso que o seu nome faz parte da toponímia de quase todas as cidades portuguesas casos do Porto, Lisboa, Tomar, Santarém, Póvoa de Varzim, Bragança, Viseu, VN Gaia, Almada, Matosinhos, Loulé e tantas outras que seria fastidioso enumerar, já os aventureiros tinham preocupações mais mundanas. A única talvez fosse o cumprimento dos horários num dia que se sabia longo e exigente. Por isso nada como dar da perna…

Talvez por esse motivo, muitos nem tenham ponderado a opção de descobrir o curioso miradouro da Senhora do Castelo, ou a terceira maior ponte pedonal suspensa do Mundo, a 516 Arouca, 175 metros acima das águas do Paiva, quase tão famosa como os passadiços que herdam o nome do rio que nasce na serra Leomil, em Moimenta da Beira, e desagua no Douro, em Castelo de Paiva, depois de 111,5 km.
Paragem que ajudou a digerir as sensações dos primeiros 90 quilómetros e, não menos importante, preparou o estomago para as emoções sensoriais que aí vinham. O espetáculo recomeçou logo de seguida, com a estreia de Arouca no mapa do Lés-a-Lés num Oásis que contou com o apoio do Sportac, clube vocacionado para atividades na natureza, com e sem motor, e dos barcelenses Motagalos. Que com freiras muito pouco ortodoxas ajudaram a ‘Rainha Mafalda’ a recriar a história do Mosteiro de Arouca, habitado por religiosas desde 1154, perante um insidioso abade.
Ainda com largos sorrisos na face perante tamanho galhofa, a Serra da Freita, numa zona de transição rochosa entre o xisto e o granito, mostrou um dos pontos altos do dia no espetacular Portal do Inferno e Garra. Local de imensa força paisagística famoso por ser onde o “morto matou o vivo”. Conta a história que nesta linha de divisão entre os distritos de Viseu e Aveiro existia o único caminho entre Covas do Monte e a Pena. Ora como só aquela tinha cemitério e havia que enterrar um morto desta, era imperioso carregar o caixão entre as duas aldeias, através da inclinadíssima vereda. Com a chuva bastou um ligeiro descuido para um dos transportadores da urna escorregar e cair do estreito caminho, caindo pela interminável ribanceira, dando origem a novo funeral e à lenda que é mais um chamariz a um local de enorme beleza. A desabitada aldeia de Drave ou a da Pena, com restaurante bem enquadrado entre o xisto e lousa, são merecedoras de uma visita, preferencialmente em dia de boa visibilidade quando as paisagens ganham outra dimensão.

Da enfermaria do Rei à torre do fidalgo sem mãos
No mapa deste 27.º Portugal de Lés-a-Lés seguiu-se São Pedro do Sul, termas onde já Afonso Henriques fazia as recuperações das feridas (e fraturas) de guerra, ofereceu mais um momento para melhor acomodar as memórias que vinham das serras da Freita e Arada, antes de descobrir novas emoções por estradas pouco conhecidas na serra do Caramulo, logo após a passagem pela nostálgica vila de Vouzela, o Coração do Centro.
Com as horas a passarem e o calor a exponenciar o cansaço, a travessia do Mondego, no muro da barragem da Aguieira com os seus 90 metros de altura, era o momento para decisões importantes. Cumprir o percurso na íntegra ou optar por um atalho para fugir ao imparável movimento dos ponteiros e não acumular atraso e cansaço, saindo das obrigatórias estradas nacionais, regionais e municipais, para rumar a Condeixa ou Soure pelas ‘proibidas’ IC3 e A1. Claro que quem optou por este atalho não foi à praia do Reconquinho, em Penacova, onde o Góis Moto Clube ajudou a autarquia local a receber as centenas de motociclistas num espaço onde a NEXX mostrava a completa gama de capacetes e resolvia alguns problemas de ocasião.

E perdiam também a oportunidade de conhecer a história do Castellum de Alcabideque, construído há 2000 anos pelos romanos para levar a água a Conímbriga ao longo de 3500 metros de condutas, ora em subterrâneo ora em aqueduto. E ficavam sem o registo de passagem no controlo do Moto Clube de Coimbra. A opção de ganhar tempo na estrada tinha, além do mais, outros prejuízos. Desde logo por ‘saltar’ Soure, onde, além da espetacular fachada em estilo neomanuelino dos Paços do Concelho, o MC Diabos de Samuel ajudava os elementos da autarquia a distribuir mais um lanchinho nas margens do rio Arunca e com direito a uma inédita travessia de moto pelas pontes pedonais.

Menos entusiasmante foi a derivação para a costa atlântica, com longas retas em direção às Praias de Pedrogão e Vieira de Leiria, onde além do Oásis oferecido pela Junta de Freguesia, foi possível molhar os pés em pleno oceano enquanto era marcado mais um visto na tarjeta de controlo. A outro havia mais adiante, numa surpreendente visita à aldeia de Burinhosa, na freguesia de Pataias, onde foi o tema, cheio de charme e elegância e bom gosto e boa disposição, foi o Encontro Nacional de Bicicletas Antigas. Iniciativa organizada por Rui Rodrigues, que decidiu participar no Lés-a-Lés numa pequena Honda Monkey deixando em casa a Honda Africa Twin, bem mais ‘aconselhável’ para estas andanças.

Da Idade Média em Aljubarrota ao Séc. XXI na Cidade do Automóvel
Com o dia a passar com uma intensidade que ia deixando todos sem fôlego, seguiu-se o Mosteiro de Coz, aberto para o Lés-a-Lés, em jeito de preparação para grandiosidade de Alcobaça, onde os participantes estacionaram com a ajuda do Grupo Motard M Molanes, e ainda puderam descobrir o COZ’ART, projeto de empreendedorismo social, com vista à inclusão social e que visa a revitalização de uma arte centenária da freguesia e a formação de novos artesãos, na área da cestaria (peças em junco). Já em Aljubarrota, afamada pela lendária padeira Brites de Almeida, mulher com seis dedos em cada mão e completamente desprovida dos ideais de beleza feminina, que matou à pazada sete soldados castelhanos que se esconderam no forno de casa depois de derrotados pelas tropas portuguesas na batalha de Aljubarrota, em 1385, a surpresa foi mesmo a receção com figurantes da ‘Aljubarrota Medieval’ trajados a rigor.
Outro dos momentos altos deste Lés-a-Lés – e da história do evento – foi a inovadora visita à Cidade… do Automóvel. Isso mesmo, um evento de motos a fazer a festa na Benecar, passeando entre mais de 1500 viaturas expostas, descobrindo a história e imagens de algumas glórias do automobilismo e ganhando direito a uma foto exclusiva com um belíssimo Ford T. Além do porco no espeto, bebidas e um sem número de experiências num espaço que tão bem acolheu os motociclistas. Que por ali ficariam mais tempo, não fosse a ‘chamada’ de Alcobaça onde estava preparada uma chegada majestosa, com as motos estacionadas frente ao mosteiro antes da viagem pedonal, para desentorpecer as pernas depois de tantas horas sentado na moto, caminhando pelo centro histórico até ao mercado de Alcobaça

Claro que alguns, de costas e braços mais sensíveis, aproveitaram a possibilidade de ‘alinhar o chassis’ junto dos seis osteopatas, sem mãos a medir perante os resultados físicos de uma etapa tão puxadinha. Mas a FMP, consciente da importância do bem-estar físico e da rápida recuperação de eventuais lesões ou dores, não abdica da presença da especializada e simpática equipa da Osteomotus. E todos dormiram bem depois da estafante “Peregrinação ao Mosteiro”, preparando um dia mais tranquilo, o da segunda etapa com um percurso de 275 km atravessando Portugal “De Lado a Lado” até Portalegre.