A moto do século Ao que consta, a designação de “moto do século” para referir a Honda CB750 Four foi usada pela primeira vez pela Motorcyclist Magazine e, à data, talvez tenha parecido um exagero, mas não foi.
Pode afirmar-se com segurança que existe um antes e um depois desta moto e torna-se mais fácil perceber porque ganhou, com justiça aquele apelido.
POR: Pedro Pereira FOTOS: Paulo Calisto / www.honda.pt/motorcycles
Mesmo sendo uma moto ainda relativamente vulgar de encontrar nos dias de hoje, as gerações iniciais (K0 “sand cast” são muito raras) e de ter tido uma produção global que ronda o meio milhão de unidades, a paixão que desperta, faz dela uma moto única. Neste caso concreto apresentamos um exemplar de 1972 (geração K2).
A moto que mudou quase tudo
Durante a década de ’60 as marcas japonesas, com destaque inevitável para a Honda, estavam a dar passos de gigante na sua afirmação, com destaque para a competição, mas essa era apenas uma parte da estratégia. O objetivo era fazer das corridas um banco de ensaio e de notoriedade para depois começar a ganhar dinheiro com as vendas.
A Honda já tinha a popular Honda CB 450 DOHC, bicilíndrica, lançada em 1965, com uma série de inovações, mas não era o suficiente para se destacar verdadeiramente frente à concorrência. Era preciso algo maior, mais refinado e potente, capaz de superar o que existia no mercado e, ao mesmo tempo, ter um preço aceitável, longe de propostas diretamente derivadas da competição e com mecânicas muito caprichosas. O projeto arrancou em segredo e decidiu-se que teria de ser uma moto verdadeiramente inovadora, diferente, para melhor, de tudo o que já existia. Uma pura “superbike”, mas que qualquer um pudesse adquirir.
Contudo, a marca nunca imaginou que a sua CB (City Bike) 750 (alusão à cilindrada) Four (referência ao número de cilindros e que só foi usada mais tarde) pudesse vir a causar tal impacto e a lista de espera nas encomendas chegasse a ter muitos meses, nomeadamente nos Estados Unidos.
A apresentação do novo modelo no Tokyo Motor Show de 1968, em outubro, apanhou de surpresa as outras marcas e até mesmo a Kawasaki que se preparava para lançar uma moto similar teve de voltar atrás e só anos mais tarde lançou a Z1 900, que apresentámos na edição #100 da revista MOTOS. A CB 750 era magnífica e cheia de inovações. Vinha equipada com motor de quatro cilindros em linha, quando a norma eram dois, disco de travão dianteiro, quando a norma eram os vetustos tambores, quatro carburadores, arranque por pedal ou motor de arranque e até quatro bonitos silenciadores de escape.
Como se não bastasse, estava muito bem construída, tinha bons acabamentos e materiais. As ondas de impacto não se fizeram esperar, um pouco por todo o lado e as concorrentes tremeram, nomeadamente as inglesas, mas o pior (ou melhor, depende do ponto de vista) estava para vir.
Quando começou a chegar aos mercados, nomeadamente o americano, até o preço de venda fazia dela uma moto acessível: cerca de 1295 Dólares! Uma moto fácil de conduzir, ágil, leve (cerca de 220 kg em ordem de marcha), capaz de atingir velocidades reais muito próximas dos 200 km/h, bem acabada, com uma fiabilidade insuspeitável e uma estética arrebatadora… não havia forma de não ser um sucesso global.
Como se não bastasse, ao longo da sua extensa carreira de 10 anos, a Honda soube ir-se adaptando aos gostos do mercado e foi fazendo pequenos ajustes cirúrgicos, pequenas melhorias técnicas, novas decorações, várias vitórias em corridas, tudo para agradar ao consumidor. Este tipo de estratégia, que a marca já dominava depois de o ter testado na indústria automóvel, ajudou ainda mais à popularidade do modelo.
Mesmo numa fase em que as vendas já estavam em franco declínio, a marca procurou até inovar com versões distintas, caso de uma “automática” equipada com apenas duas mudanças (Hondamatic) e, mais tarde, usando uma estrutura já de dupla árvores de cames (DOHC) em novos modelos como a sua Custom Nighthawk 750.
A magnífica geração K2
O exemplar que vos apresentamos, com um agradecimento ao Mário Sousa, seu orgulhoso proprietário e que serviu também para modelo das fotos, é de 1972 (daí a designação K2), sendo que não foi matriculada inicialmente em Portugal.
Basta olhar para o conta-quilómetros e ver que é um conta-milhas! Melhor ainda! Marca apenas cerca de 13.000 milhas, ou seja, pouco mais de 20.000 km e são reais, sendo que a moto está há muitos anos no nosso país. De acordo com a informação pesquisada, da geração K2 foram produzidas cerca de 63.500 unidades e em três cores distintas: laranja (Flake Sunrise Orange), dourado (Candy Gold) e castanho (Brier Brown Metallic) e são facilmente distintas das outras gerações graças, por exemplo, pelo aro cromado do farol.
Este exemplar já foi alvo de restauro há uns anos (a pintura parece nova) e está num estado excelente, embora seja facilmente percetível que o assento não é original. Aliás, nos anos da comercialização e seguintes era prática comum fazer alterações: guiador diferente, outro assento, fazer dos escapes “quatro em um”, amortecedores melhores… eram apenas alguns exemplos.
Na atualidade, quanto mais fiel ao original estiver a moto, tendencialmente, maior será o seu valor comercial ou pelo menos o interesse que desperta junto dos colecionadores e fãs do modelo que a adoram. Muitos deles usam-na regularmente não apenas para encontro de clássicas, mas até mesmo como meio de transporte ou de diversão de utilização mais frequente.
Sensações de condução
Conduzir uma CB 750 Four não é uma aula de arqueologia prática, mas é fulcral que tenhamos a humildade de nos focalizar no contexto de um projeto que começou a ser delineado nos meados da década de ’60. Se tivermos essa consciência percebemos que a moto, face aos padrões atuais é quase um fóssil motociclístico, mas na época era o clímax e se em 1969 a Missão Apollo 11 chegou à lua e mudou a visão do espaço, também a CB 750 mudou a realidade do motociclismo global nesse ano. A chave de ignição ainda está posicionada na lateral esquerda e o resto é o habitual: abrir torneira de gasolina, enriquecer a mistura (choke) se o motor estiver frio e usar o motor de arranque ou o pedal (kick starter), fica ao critério de cada um.
Até aí o mais comum era as motos virem equipadas apenas com pedal. Numa lógica conservadora e de ter um sistema de redundância a Honda optou por ambos os sistemas, sendo fácil de colocar em funcionamento das duas formas, desde que as válvulas estejam afinadas, os carburadores estejam bem sincronizados, a gasolina seja de qualidade, a compressão esteja dentro das tolerâncias… A posição de condução é excelente, apesar de para o meu gosto pessoal o guiador ser algo estreito, mas é uma moto muito engraçada de conduzir, apesar de a curvar se sentirem mais as suas limitações de quadro e suspensões, tal como ao nível da travagem.
O motor, com os seus simpáticos 67 cv às 8000 rpm e um binário de 60 Nm às 7000 rpm, praticamente não vibra e sobe bem de rotação, sendo que a meio do taquímetro, já se sente bastante cheio e forte, permitindo uma condução muito ágil, com elevado gozo e a velocidades não muito acima dos limites legais.
Uma moto para conduzir de forma mais descontraída, mas que não se nega a uma toada mais rápida, embora aqui as suas fraquezas se comecem a notar mais e os quatro Keihin comecem a sugar gasolina de forma mais decidida, à medida que a melodia dos escapes se altere de forma progressiva. Ao ser uma moto tão comum ainda é mais ou menos possível encontrar todas as peças necessárias para o seu bom funcionamento, até porque muitas delas ainda vão sendo produzidas.
Porém, existem algumas específicas, caso dos quatro silenciadores de escape, que são efetivamente muito caros. Cada um, original, atinge facilmente valores acima dos 1000 € pelo que a solução passa, geralmente, pelo uso de réplicas.
Notas finais
Uma viagem ao passado é sempre uma oportunidade de conhecer melhor como as coisas se viviam num tempo em que muitos de nós ainda não eram nascidos ou tinham pouca consciência do que era o mundo real.
Conduzir esta Honda CB 750 Four é mais que isso e ajuda-nos a perceber como a Honda, que à data era uma marca jovem com apenas duas décadas, conseguiu mudar o panorama mundial do motociclismo, criando uma verdadeira rutura com o passado e firmando uma reputação que ainda hoje conserva.
Esta verdadeira “revolução motociclística”, como todas as revoluções, também teve consequências, sendo a mais óbvia morte de grande parte indústria motociclística reinante, com especial destaque para a europeia.